quarta-feira, 30 de novembro de 2011

LEIA E ENTENDA COMO SE CONSTRÓI UM ESTADO JUSTO E UMA SOCIEDADE DECENTE

Três Pilares da Ordem: Edmund Burke, Samuel Johnson, Adam Smith
Russel Kirk
Burke e Johnson e Smith, de suas diversas maneiras, descreveram e defenderam aquelas crenças e instituições que mantêm a tensão beneficente de ordem e liberdade.
Parte I
O que Matthew Arnold chamou de “uma época de concentração” paira sobre as nações de língua inglesa. Os impulsos revolucionários e os entusiasmos sociais que dominaram nosso século, desde sua grande explosão na Rússia, são agora confrontados por uma força física e intelectual equivalente. A ideologia fanática tem sido, em essência, rebelião contra a velha ordem moral de nossa civilização. Para resistir à ideologia, certos princípios e usos de ordem têm despertado, como aqueles que se ergueram contra a fúria da inovação francesa depois de 1790. Nós ingressamos em um tempo de reconstrução e reavaliação; reconhecemos um conservadorismo ressuscitado em política e filosofia e letras.
A Inglaterra durante a “época de concentração” de Arnold tornou-se, apesar de sua desilusão, uma sociedade de alto nível intelectual, a latente energia revolucionária desviada para fins de reconstrução. Que a época de concentração tenha mostrado qualidades morais tão poderosas, não afundando em uma mera reação guiada, Arnold atribuiu à influência de Edmund Burke. De fato, Burke venceu a morte, além de suas próprias expectativas, em seu ofício de sustentar a ordem da civilização. “A comunicação dos mortos é pronunciada com fogo através da linguagem dos vivos.” Deixem-me adicionar ao nome de Edmund Burke os grandes nomes de Samuel Johnson e Adam Smith, e permitam-me sugerir a vocês, muito rapidamente, como esses três nomes da segunda metade do século XVIII explicaram e defenderam aquela ordem social e moral que perdura até nossa presente década turbulenta.
Apesar de esses três grandes homens se conhecerem, eles não eram íntimos; Smith e Johnson, na verdade, eram adversários. Burke era um líder prático de partido, Johnson um poeta e um crítico, Smith um professor (normalmente) de filosofia moral (na verdade, ele também converteu seu posto em Glasgow em uma cadeira de finanças e economia política). Johnson era um Tory [2], Burke e Smith eram Whigs [3]. Indubitavelmente seus fantasmas ficariam estupefatos ao encontrar seus nomes unidos amigavelmente perto do fim do século XX. Ainda assim, pode-se dizer sobre eles o que T. S. Eliot escreveu sobre os partidários da Guerra Civil Inglesa: eles “Aceitam a constituição do silêncio / E estão juntos em um único partido.”[4] Que partido, atualmente? Ora, podemos chamá-lo de o partido da ordem.
Todos os três homens eram moralistas; todos eram realistas e observadores astutos; todos davam primazia à ordem no corpo político. Proponho falar brevemente sobre algumas de suas várias convicções, comparar os três e sugerir suas relações. Tratemos primeiro de Burke, sobre quem tenho escrito muito – provavelmente até demais.
Em 1790, quando Burke publicou suas “Reflexões sobre a Revolução Francesa”, ele havia sido político por trinta anos. Todavia, sua ambição era, nos tempos de mocidade, ser bem-sucedido como um homem de letras, abstendo-se de “políticas tortuosas”. Como Johnson, Burke era um homem de letras que extraiu sua política de sua ética e seu conhecimento de história (bem como de uma intensa experiência prática, no caso de Burke); mas, ao contrário de Johnson, ele fez da política sua carreira. Foi preciso a catástrofe da Revolução Francesa para desviar o político Whig do ofício prático do Estado para a consideração dos primeiros princípios de ordem social civil.
Quando tinha apenas dezessete anos, Burke vislumbrou o abismo no qual o Iluminismo se lançaria. “Creia-me”, ele então escreveu para um amigo, “nós estamos à beira da Escuridão e um empurrão nos fará cair – haveremos todos de viver, se vivermos muito, para ver a profecia do Dunciad [5] cumprida e a era da ignorância emergir uma vez mais... Não há ninguém para salvar o mundo de seu caminho de obscuridade? Não, ninguém...” E ele citou Virgílio: “volta o reinado de Saturno e uma nova geração humana desce do alto dos céus.”[6]
Em 1790, Saturno estava em armas. Anacharsis Cloots [7] escreveu a Burke em maio daquele ano que a Europa não deveria mais ter arquitetura gótica: Notre Dame seria posta abaixo, e um harmonioso Templo da Razão seria erigido no lugar da catedral, para ser admirado por todos os conhecedores das artes. Mas Burke concluiu que a sublimidade da religião cristã e o edifício gótico da civilização européia não deveriam ser submetidos à clave dos destruidores. Contra uma doutrina armada, uma revolução de idéias morais conduzida com violência, Burke lutou com todo seu poder. Sua determinação era renovar “o arcabouço de uma imaginação moral”. Paixões uma vez libertadas, benevolência abstrata e posturas iluminadas não eram suficientes para manter o homem longe da anarquia, Burke sabia. O obsceno e o terrível, o sensual e o sombrio, erguem-se das profundezas quando a autoridade moral é achacada. Pois o homem sai do mistério, e é tragado de volta à terrível obscuridade quando se arroga o mestre racional de tudo sobre a terra. Assim seguiu a retórica inflamada de Burke em seus últimos anos. Existem chamas de glória, e chamas de danação. Nascemos em uma ordem moral, Burke disse à Inglaterra; e se desafiarmos essa ordem, nosso fim são as trevas.
“Burke dá uma alma ao Estado”, escreve Hans Barth. “Ele o torna pessoal, ele o preenche de valores e conteúdos da alma individual. Ele quer fazê-lo digno de devoção e da possibilidade de sacrifício pessoal.” Burke percebeu que o Estado justo existe em uma tensão entre os reclames de autoridade e os reclames de liberdade. E amor ao país, como o amor por parentes ou amigos, Burke sabia, não pode ser fruto de mero cálculo racional. Nada, ele diz, é mais malévolo do que o coração de um metafísico puro – isto é, do “intelectual” que entrona seu ego e seu estoque pessoal de razão sobre as ruínas do amor, do dever e da reverência.
Nos jacobinos, Burke percebeu os fanáticos da doutrina armada, determinados a solapar o amor cristão e o Estado de Direito – a revolta dos arrogantes talentos conspiradores de uma nação contra a propriedade e as tradições da civilidade. Recaiu aos homens da Era Napoleônica cunhar a palavra “ideólogo” para descrever essa paixão por inovação, essa violenta voracidade para abolir a antiga moralidade e a velha ordem social, que a Nova Jerusalém poderia ser criada sobre princípios de razão pura.
Para resistir aos jacobinos, Burke levou a cabo o que Louis Bredvold chamou de “a reconstrução da filosofia social”. Como Platão em seus tempos de desordem, Burke trabalhou para adaptar a antiga estrutura de sua civilização aos desafios de seu tempo. Sabendo que a Humanidade é governada não pelas especulações dos sofistas, mas por uma “estupenda sabedoria moldando em conjunto a grande e misteriosa incorporação da raça humana”, Burke buscou reviver a compreensão do “contrato da eterna sociedade”.
Uma das disputas mais intensas sobre o sentido de Burke emergiu da dúvida se ele era, antes de tudo, um homem de princípios perenes, ou um campeão de conveniência e empirismo; se ele permaneceu na “grande tradição” do pensamento político clássico, ou se era um irracionalista romântico. Essa controvérsia parece ter sido promovida especialmente por uma passagem de “Direito Natural e História”, de Leo Strauss. “Burke chega perto de sugerir que opor-se a uma corrente meticulosamente malévola em relações humanas é perverso se essa corrente é suficientemente poderosa”, escreveu o professor Strauss; “ele ignora a nobreza da resistência extremada.” Ainda que Leo Strauss fosse, no fim da vida, um admirador de Burke, essa observação foi transformada por outros em uma denúncia generalizada contra Burke e como um guia em tempos de revolução.
O ultimo parágrafo de “Thoughts on French Affairs” (1791), de Burke, é a fonte à qual se referem as críticas de Strauss. “Se uma grande mudança está por ser feita em relações humanas”, escreveu Burke, “as mentes dos homens serão encaixadas a ela, as opiniões e os sentimentos gerais traçarão aquele caminho. Todo medo, toda esperança, a seguirá; e então, aqueles que persistem em se opor a essa poderosa corrente em relações humanas parecerão mais resistir aos decretos da Providência do que a meros desígnios dos homens. Eles não serão resolutos e firmes, mas perversos e obstinados.”
Os críticos contumazes de Burke interpretam essa passagem de modo a significar que, na visão de Burke, os princípios mudam com os tempos, e a moral com a atmosfera; e que (antecipando Hegel) não devemos nos opor futilmente à Marcha da História. Mas essa interpretação de Burke ignora a verdadeira trajetória de Burke. Qualquer um interessado no assunto deve reler o “Thoughts on French Affairs”. Nele, Burke não sugere que talvez os campeões da religião e das coisas estabelecidas devem deixar-se serem varridos pela corrente da Revolução Francesa. Ao contrário, ele diz que a oposição efetiva à Revolução deve ser o trabalho de muitas pessoas, agindo inteligentemente e em conjunto; ele professa sua inabilidade, como um velho político aposentado do Parlamento e afastado de seu partido, de fazer algo além de declarar o mal. A “poderosa corrente” pela qual ele anseia é um despertar dos homens com “poder, sabedoria e informação” para o perigo da Revolução; ele pede por um levante da opinião pública em apoio a coisas que não nasceram ontem. A Providência opera ordinariamente através das opiniões e dos hábitos e das decisões dos seres humanos, Burke disse anos antes; e, se a Humanidade negligenciar as leis da conduta humana, então uma providência vingativa pode começar a operar. De todos os homens de seu tempo, Burke era o que mais se opunha veementemente a qualquer comprometimento com o Jacobinismo. Ele teria escolhido a guilhotina à submissão – ou, como ele mesmo colocou, a morte com espada em punho. Ele rompeu com amigos e com o partido, sacrificando sua reputação e se arriscando a ir à falência, ao invés de encorajar a última concessão da facção “pacífica” na Inglaterra.
Nem um devoto irracional do arcaico, tampouco um apóstolo da sociedade utilitarista que estava emergindo perto do fim de sua vida, Edmund Burke surge, em todos os anos de nosso tempo, cada vez mais, como um filósofo relutante que apreendeu a ordem moral e social. Política prática, ele ensinou, é a arte do possível. Não podemos alterar unilateralmente o clima de opinião, ou as instituições de nossos dias, com a adesão altiva a inflexíveis doutrinas abstratas. O estadista prudente, em qualquer época, deve lidar com as opiniões e os costumes prevalentes como ele os encontra – ainda que ele deva agir à luz de princípios perenes (que Burke distinguiu de “abstrações”, ou teorias sem base numa verdadeira compreensão da natureza humana e das instituições sociais como realmente são).
Burke pode ter sido muitas coisas – dentre elas, um grande economista. Adam Smith declarou que o raciocínio econômico de Burke, como expresso em sua obra “Thoughts on Scarcity”, estava mais próximo de seu próprio raciocínio do que qualquer outra pessoa com quem ele não se comunicou diretamente. Como editor do Registro Anual [8] por muitos anos, e arquiteto de peças elaboradas de legislação como a Reforma Econômica, Burke conhecia intimamente a ciência estatística em sua gênese no século XVIII. Ainda assim, Burke expressava freqüentemente seu desgosto por “sofistas, economistas e calculadores”, pelos quais a glória da Europa foi extinta. Em outro ponto das “Reflexões”, ele argumenta que a indústria e o comércio devem muito aos “antigos costumes”, ao espírito cavalheiresco e ao espírito da religião, e falhariam sem o suporte desses costumes antigos; todavia, ele reforça, com algum desgosto, que “comércio, e troca, e manufatura” são “os deuses de nossos políticos econômicos”. Apesar das conexões comerciais dos Whigs, Burke permanece fortemente ligado aos interesses rurais e dos agricultores. Ele reprova a obsessão com questões econômicas, percebendo que a sociedade é algo mais vasto e nobre do que um mero contrato comercial.
Burke revisou favoravelmente “A Riqueza nas Nações” no Registro Anual, e conheceu ocasionalmente Adam Smith no Clube [9], em Londres. Smith foi anfitrião de Burke em Edimburgo, em 1784, e eles se encontraram novamente em 1785; Smith foi nomeado por Burke para a Sociedade Real de Edimburgo. Eles eram amigos, em suma, mas não estreitos colaboradores. Muitos paralelos podem ser traçados entre suas respectivas lições em economia política, mas deve-se notar que Smith, em suas assunções sociais, era muito mais individualista do que Burke. Suspeito que Burke deve ter tido uma relação um pouco desconfortável com Smith em virtude da íntima amizade de Smith com o grande cético David Hume, contra cujos primeiros princípios Burke se opôs (de sua parte, Hume desejou a amizade de Burke, e foi Hume quem apresentou Smith aos escritos de Burke, dizendo a ele para enviar uma cópia de sua “Teoria dos Sentimentos Morais” para “Burke, um cavalheiro irlandês, que escreveu recentemente um belíssimo tratado sobre o Sublime.”).

Nenhum comentário: