segunda-feira, 28 de novembro de 2011

RIO DE JANEIRO NA DER SPIEGEL

Rio de Janeiro usa métodos dúbios para pacificar favelas


Cathrin Gilbert - Der Spiegel
O Brasil espera que receber a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 estabeleça firmemente o país como uma potência econômica global. Primeiro, entretanto, o Brasil precisa retomar o controle das vastas favelas do Rio de Janeiro. Nem todos os métodos foram bem recebidos.
Os homens chegaram à noite. Armados com rifles de assalto, agarraram Jonathan e o levaram embora. Ele não se lembra do que aconteceu. Afinal, ele estava mais uma vez sob os efeitos do crack.
Jonathan, que parece ter 10 ou 12 anos de idade, é viciado em crack, mais um entre as centenas de crianças sem-teto viciadas que vivem nas ruas do Rio de Janeiro. Seu pai, que era traficante, foi assassinado com um tiro no rosto quando Jonathan era pequeno. “Minha mãe também morreu pouco tempo depois”, conta. Sua voz soa crua e seca, e ele não tem os dentes da frente.
O território de Jonathan costumava incluir o Complexo do Borel, uma das favelas mais famosas da cidade, localizada a apenas 20 minutos de ônibus das famosas praias de Copacabana e Ipanema. Até aquela noite de verão, pelo menos, quando ele foi levado pela segurança do estado.
Agora o garoto está sentado no jardim de uma casa depredada no interior, localizada a duas horas de carro do Rio. As telhas estão cheia de buracos, o gesso está caindo das paredes e não há médicos ou terapeutas à vista. Em vez disso, há guardas grandes com rádios no cinto, cujo trabalho é evitar que Jonathan e outros 20 jovens fujam da propriedade.
O lugar é um dos inúmeros lares para os quais o governo do Rio enviou esses menores que são considerados um problema de segurança – crianças que não só roubam para sobreviver mas que talvez não se intimidem em matar.
No verão de 2014, o Brasil receberá a principal competição internacional de futebol, a Copa do Mundo. Dois anos depois, o Rio será o palco dos Jogos Olímpicos. Ambos os eventos são vistos como uma oportunidade para o país provar ao mundo que conseguiu fazer com sucesso a transição de um país em desenvolvimento para uma grande nação industrializada.
Fora da vista
O Brasil está ansioso para garantir que nada interfira com a imagem que está tentando transmitir. Esta primavera, autoridades municipais do Rio de Janeiro promulgaram uma lei que permite a remoção à força de crianças viciadas em drogas das ruas. Não se sabe quanto tempo crianças viciadas em crack como Jonathan ficarão presas, e tampouco se sabe quem cuidará delas. Tudo o que importa é que elas estão fora da vista.
Embora não haja números confiáveis, acredita-se que cerca de um terço dos 6 milhões de habitantes do Rio vivam em favelas. No início dos anos 80, a cidade desistiu de tentar resolver a miséria em seus bairros pobres. Como resultado, as favelas se tornaram ilhas de violência no coração da cidade, governadas por quadrilhas de traficantes poderosas que ditavam a vida – e a morte – dos moradores.
Mas desde que o Rio foi escolhido para abrigar os dois eventos esportivos mais importantes da década, está lutando para retomar o controle de suas “zonas problemáticas” há muito abandonadas – particularmente aquelas no sul e sudeste da cidade, onde as favelas fazem fronteira com áreas em que centenas de milhares de turistas se reunirão para a Copa do Mundo e as Olimpíadas.
Uma nova força tarefa da polícia foi criada, a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que desde novembro de 2008 começou gradualmente a entrar nas favelas mais importantes com a ajuda de forças especiais e dos militares. Eles confiscam armas, prendem chefes do tráfico e estabelecem uma rede estreita de checkpoints permanentes. A presença de policiais da UPP, onipresentes e armados, tem a intenção de enviar uma mensagem clara de que o estado está mais uma vez sob controle.
Até agora as autoridades do Rio retomaram 19 das maiores favelas da cidade. Mais recentemente, 3 mil policiais e soldados entraram na favela da Rocinha há pouco mais de uma semana – uma das favelas mais sem lei da cidade, na qual acredita-se que morem até 250 mil pessoas.
Tiroteios e 40 mortes
A "Operação Choque de Paz” começou às 4h. Veículos armados foram posicionados em lugares estrategicamente importantes, forças especiais armadas varreram as ruelas íngremes, e o ar foi preenchido com o som intimidador dos helicópteros que coordenavam a operação do alto. A Rocinha foi tomada numa questão de horas – sem que nenhum tiro fosse dado, disseram.
Nem todas as operações foram tão pacíficas. Quando as forças especiais tentaram retomar o controle do Complexo do Alemão no ano passado, houve tiroteios na favela durante dias, matando mais de 40 pessoas. E quando as forças de segurança entraram no Complexo do Borel em junho do ano passado, encontraram uma resistência armada rígida por parte do Comando Vermelho.
As favelas ocupadas estão agora sob a jurisdição do Coronel Robson, chefe da UPP. Robson, 48, é policial há 26 anos. A Operação Choque de Paz foi um projeto dele e o país inteiro está agora de olho nele. Muitos acham que o sucesso de sua missão determinará como o mundo julgará a capacidade da sociedade brasileira de integrar e progredir.
Por outro lado, entretanto, os planos do coronel também atacam a principal característica do futebol no Brasil. Afinal, o “jogo bonito” tem sua raiz nas favelas, e muitos dos melhores jogadores do país cresceram nesse cosmos anárquico das megacidades brasileiras. A questão agora é quanto desse mundo restará.
“A impotência é a última coisa que o Rio de Janeiro pode admitir dois anos e meio antes da Copa do Mundo”, diz Robson. São duas da tarde de sábado, a chuva cai e o coronel Robson está fazendo suas rondas. Ele está sentado no banco do passageiro de uma limousine preta. A jaqueta de seu uniforme tem três estrelas brilhantes nos ombros. Seu quepe está levemente inclinado para um lado.
Calma opressiva
O carro vira numa rua secundária a caminho da única entrada para a favela do Morro do Turano. O portão que atravessa a parede de pedra é conhecido como “boca”. Os homens de Robson entraram na favela no ano passado e agora há um veículo armado estacionado na esquina perto do portão. Dentro dele há dois policiais uniformizados, usando coletes à prova de balas. Quando veem a limousine de seu comandante com os vidros fumê, eles saem do carro para saudá-lo.
A limousine então passa pela boca. Há apenas um ano, os chefes do tráfico que controlavam a favela teriam aberto fogo contra o coronel quando ele entrou. Hoje o lugar está calmo. Uma pequena rua de paralelepípedo serpenteia para cima deixando para trás um mar de barracos dependurados no morro. Essas casas são feitas de pedra, madeira compensada, latas e folhas de palmeira, tudo isso seguro com tábuas de madeira. Parece que elas podem cair morro abaixo a qualquer momento.
O ar está denso com o cheiro pungente de plástico queimado; não existe coleta de lixo nas favelas. Poucos homens estão nas ruas, mas algumas mulheres estão sentadas na frente de seus barracos. A calma parece opressiva – como se as pessoas vissem os policiais da UPP não como protetores mas como ocupantes dos quais precisam se esconder.
O coronel Robson, que é divorciado, tem uma filha e atualmente está junto com uma policial, comanda cerca de 300 policiais militares no Morro do Turano. Eles estão posicionados a cerca de 150 metros no interior, com metralhadoras a postos, cassetetes presos nos cintos. O objetivo é tanto prevenir a violência quanto fornecer uma sensação de segurança para os moradores da favela. No passado, diz Robson, os ataques esporádicos da polícia e do exército nas favelas costumavam deixar atrás um rastro de morte e destruição. Agora ele espera um tipo de reaproximação com os moradores das favelas.
A polícia do Rio ainda busca armas e drogas na favela da Rocinha. Já foram apreendidos quase 150 artefatos explosivos, entre granadas e bombas.
Turistas fazendo fila para o crack
A UPP até faz vista grossa para os traficantes que vendem seus produtos nas ruas secundárias atrás da boca. Depois de escurecer, todas as noites, dezenas de turistas e moradores dos bairros mais ricos do Rio fazem fila para comprar cocaína ou crack – todos eles são as pessoas que Robson e seus homens deveriam supostamente proteger.
Os traficantes mais bem sucedidos ganham o equivalente a US$ 200 mil num mês bom. Peterson é um deles. Como todas as noites, ele está parado em frente à seu barraco de pedra. Desde que a UPP de Robson expulsou os ex-chefes do tráfico do bairro, Peterson e um amigo vêm controlando o mercado. Há uma abertura para vigilância no teto, de onde ele pode ver os policiais “em pé sem objetivo e olhando para seus celulares.”
Peterson tem 19 anos. Ele diz que nunca foi além dos muros de sua favela. Sua história de vida não é incomum para os jovens das favelas: seu pai matou sua mãe quando Peterson tinha dois meses de idade. Pouco depois, seu pai foi morto num ataque em represália. Como resultado, o garoto magro com cabelo bem curto foi criado pela avó.
“Não podemos eliminar as drogas no Rio”, disse Robson friamente. “Qualquer um que pense isso é ingênuo.” Seu motorista havia chegado ao topo do morro em que fica a favela. No alto há um contêiner pintado de azul e branco que pode parecer uma casa de Playmobil, mas na verdade é uma base da UPP. Robson tira seu quepe e pede uma xícara de café para um oficial.
Robson é um homem muito procurado. Há poucas semanas, ele apresentou seu conceito numa reunião na capital argentina, Buenos Aires. Em Berlim ele foi convidado da Heinrich Böll Foundation. Ele deu palestras em Barcelona, Espanha, e na capital colombiana, Bogotá. Todo mundo quer saber como o coronel planeja levar a paz para as favelas e superar as fraturas aparentemente imensas da sociedade brasileira.
“Bem público”
Na favela do Complexo do Borel há uma praça chamada Chácara do Céu. Até um ano e meio atrás, duas quadrilhas rivais faziam batalhas intensas no local. Em nenhum outro lugar da favela houve mais mortes do que lá.
Recentemente, as crianças começaram a ir para a praça para jogar futebol. O ar cheira a borracha; ela foi coberta recentemente com grama artificial; meninos e meninas correm em círculos em torno de um policial. Ele usa só uma camiseta, depois de tirar seu colete a prova de balas e sua arma. Ele acabava de entregar sapatos e camisas de futebol para as crianças, a maioria das quais jogavam descalças até então. Um nome está impresso na manga das camisas: Zico O ex-jogador internacional brasileiro, um dos maiores astros do futebol que o país já produziu, patrocina o projeto.
“Queremos atingir as crianças que ainda não estão viciadas em drogas”, explica Robson. “As crianças que não são uma causa perdida”. Entretanto, não há espaço na visão de Robson para crianças viciadas em crack como Jonathan. O líder da UPP tem uma visão fria sobre a sociedade brasileira, e não tem problema em defender a prisão de menores “para o bem público”.
Cada vez mais, entretanto, as ações brutais das forças de segurança estão encontrando oposição. Raquel Rolnik é uma professora internacionalmente conhecida que dá aula de planejamento urbano na Universidade de São Paulo e é relatora especial da ONU sobre moradia adequada. Ela acusa o governo de abusar de direitos básicos com seus projetos de reassentamento.
Romário, que já foi Melhor Jogador do Mundo, também criticou as operações. Num discurso recente na Câmara, o jogador que virou político e entrou para o Partido Socialista Brasileiro há dois anos, disse: “Não podemos permitir que as pessoas sejam levadas” e falou sobre “condições parecidas como as áreas palestinas ocupadas.”
Romário, integrante da seleção brasileira que ganhou a Copa do Mundo em 1994, nasceu na favela do Jacarezinho no Rio.
Tradução: Eloise De Vylder



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